quarta-feira, 1 de agosto de 2007

"União em torno da arte"


Célio Turino

Gente de todos os cantos . Os Yawalapíti, deixaram sua aldeia no alto Xingu, viajaram de barco , tomaram ônibus em Canarana, desceram de Brasília até São Paulo. Outros vieram de além da linha do Equador , “A Bruxa está solta”, na fronteira com a Guiana. Também chegaram os que vieram do Sul , juntando barro com chimarrão , “Chibarro”, de Pelotas ; ou dos canaviais da zona da Mata pernambucana , “Maracatu Estrela”, de Aliança . Outros desceram os morros , enfrentaram a guerra civil na favelas e aqui estão, mães e filhos , “Jongo da Serrinha”, do Rio de Janeiro . E também houve aqueles que estão tão perto , mas que nunca puderam adentrar num espaço como a Bienal de São Paulo, ainda mais como protagonistas , gente dos extremos de São Paulo, do Capão Redondo à Cidade Tiradentes.
Não foi fácil chegar até aqui , mas se olharmos para trás vamos perceber que esse jeito diferente de o governo se relacionar com a sociedade , de reverenciar o nosso povo , de compartilhar , começou há menos de dois anos . Atendendo pedido do Secretário Executivo Juca Ferreira , do Ministro Gilberto Gil e do Presidente Lula , demos início ao Programa Nacional de Cultura , Educação e Cidadania – Cultura Viva . Nosso objetivo : unir Arte com Educação , Cidadania com Economia Solidária e fazer isso chegando naqueles lugares onde o Estado nunca antes chegou. E chegar ouvindo, conversando com o povo , acreditando na inventividade e na solidariedade do brasileiro .
Assim surgiram os Pontos de Cultura. A seleção foi por edital público ; em 2004 recebemos 850 propostas , das quais 220 tornaram-se Pontos de Cultura. Em 2005, novo edital e 2300 projetos inscritos, com 400 selecionados , sendo que 200 já estão conveniados. De partida , evitamos o caminho da imposição ou do dirigismo, que , mesmo quando bem intencionados, carregam toda uma carga de preconceitos , imposições e hierarquias . Preferimos compartilhar .
Antes de oferecer uma estrutura artificial , olhamos para o fluxo da vida e disponibilizamos até R$ 185 mil para cada Ponto sendo que o dinheiro é aplicado conforme a necessidade de cada um . Em alguns lugares pode ser a adequação de espaço físico , em outros a compra de equipamentos , a melhora da estrutura , ou então , como na maioria , a realização de atividades , cursos e oficinas culturais. Invertendo a lógica da estrutura para a lógica do fluxo , optamos por repassar os recursos , não de uma única vez , mas em 5 parcelas semestrais e conforme o plano de trabalho de cada proponente. Como elemento comum , o estúdio multimídia , cujos primeiros 100 serão entregues a partir da TEIA . Com isso vamos compondo a rede , ou melhor , tecendo a rede . E de uma forma diferente , mudando a tradicional relação entre Estado e Sociedade ; no lugar de concentrar , liberar energias ; no lugar de impor , dispor .
A este novo conceito chamamos de Potencialização das Energias Sociais. E potencialização com Encantamento . Encantamento de quem busca na raiz de nossa cultura os elementos para nossa Emancipação. Onde encontrar mais espírito de partilha que na tradição popular ? Como uma folia de Reis sobrevive por séculos ? Não é pela troca , ou pela generosidade onde cada morador contribui com um prato de comida ou adereço que permite aos caminhantes continuarem sua caminhada ? O que pode haver de mais sagrado que uma nascente de água ou cachoeira ? Templos do Candomblé , sagrados porque a vida tem que ser sagrada . Ou então o nosso futebol , gingado , com molejo , um balé em campo que encanta o mundo . De onde ele veio se não da ginga da capoeira , dos escravos fugidos, da república livre de Palmares , dos quilombos e dos tombos na luta pela liberdade ? Capoeira , uma luta que é dança .
Ficar presos apenas às tradições , porém , não basta , pois estas também foram inventadas algum dia , já nos ensinou o historiador Eric Hobsbawm. É preciso ir além , romper preconceitos , ideologias ; transformar ... E não é nas favelas , assentamentos rurais e periferias das grandes cidades que encontramos o germe da partilha e da solidariedade popular ? Falam da violência das favelas como se essa fosse a marca de seus moradores. Pelo contrário , lá vive gente trabalhadora, criativa . Os morros do Rio nos deram Donga, Cartola ...(a quem peço abenção). Dizem que os Sem Terra são violentos e baderneiros . É isso que nos mostra a mídia e toda a carga ideológica que ela transmite. Aqui na TEIA, jovens sem terra apresentarão teatro , dança , músicas que dizem: “Gentileza gera gentileza”. Mas se negamos gentileza aos filhos desta terra , transformamos vítimas em algozes , como vimos no documentário de MVBill; o rapper, que , em suas próprias palavras , “poderia ter sido um guerreiro do tráfico, mas que foi salvo pelo hip hop”, este movimento que une os jovens excluídos em todo mundo e que está sendo homenageado aqui no Espaço Preto Ghoez, nosso colaborador de primeira hora . Certo dia , na inauguração do Ponto de Cultura no assentamento rural de Brazlândia, um menino do Ponto de Cultura – Atitude, de Ceilândia, também no Distrito Federal constatou que , naquele momento , que “os jovens excluídos da cidade estavam se encontrando com os excluídos do campo”, e que isso seria bom para ambos.
“Uni-vos”, disse Marx em seu manifesto . Aqui temos Pontos de Cultura das favelas , periferias , trabalhadores sem terra , moradores de pequenos municípios , índios , quilombolas . E nos unimos com arte . Sim , porque a arte é a habilidade de nosso povo ; um povo que se transforma no contato com o outro e que depois retoma suas raízes em novas bases . A alienação do Mercado , a indústria cultural ditatorial e impositiva, a brutalidade da vida cotidiana submetida à busca incansável pelo dinheiro , tentam desmoralizar esse jeito brasileiro de ser , apresentando nosso “jeitinho”, como sinônimo de algo ruim . Uma forma malandra (a malandragem dos “de cima”, dos que se impõem pelo monopólio da informação) de fazer com que tenhamos vergonha de nós mesmos , de nos tratar pejorativamente e assim fazer com que milhões se submetam a este ser onipresente e onisciente que é o mercado . Que também poderia ser chamado de Piaimã, o gigante comedor de gente da rapsódia de Macunaíma. Assim , vão dirigindo nossos gostos , pasteurizando nossos dias , roubando nossas almas .
Nos unimos com e pela arte . E com “jeitinho”. Foi desta forma que a arte da periferia (seja geográfica , social , cultural) chegou à Bienal de São Paulo. Aqui na TEIA tem arte solidária , tem inovação estética e ética e tudo feito de forma descentralizada e sem dirigismo. E é isso que queremos mostrar . Mostrar e transformar e mostrar de novo e transformar novamente . Quem veio pensando em encontrar uma reedição dos Centros Populares de Cultura , enganou-se. Também não vai encontrar meras ações sócio-educativas voltadas para os pobres . Aqui tem arte de vanguarda , criação , reflexão . Tem também o sócio-educativo para os pobres , tem também tradição , cultura popular . Por que não ? Na tradição encontramos forças para dar saltos , entender nossas origens , voltar para o círculo , romper o círculo e crescer em espiral ; no sócio-educativo encontramos um dos caminhos para tornar mais suportável nossa vida tão maltratada: unir arte , com cidadania e economia e entender que tudo isso é cultura . “A solução dos problemas do Brasil virá da escassez”, é o que estamos fazendo com os Pontos de Cultura , e fazendo com os “os de baixo”; como nos ensinou Milton Santos .
Na TEIA os Pontos de Cultura , sejam os que fizeram convênio com o governo ou os que já existem independente deste apoio (e são tantos , milhares ) se encontraram com os núcleos de Economia Solidária , cooperativas e fábricas recuperadas por operários e hoje dirigidas por eles . Também tivemos palestras conceituais, metodológicas, oficinas , produção audiovisual . Aqui o governo se encontrou com o povo e houve o esforço de muitos ministérios , secretarias , órgãos governamentais e da sociedade , além de Sesc, Sebrae, Bienal de São Paulo, Instituto Paulo Freire, Rede Brasil de Produtores Culturais, IESDE, Instituto Paulo Freire, CENPEC, Laboratório de Políticas Culturais, IPTI, PNUD. Ou também de artistas como Piassa e seus Totens . Mas , estaria cometendo injustiça se, ao falar de orgãos no abstrato , deixa-se de mencionar pessoas , servidores públicos do ministério da cultura que , com sua dedicação , reestabelecem o sentido da palavra servidor público : servir o público e não servir-se dele. Da mesma forma , não teríamos chegado onde chegamos se não tivéssemos contado com o firme apoio e orientação da secretaria executiva do MINC e isto se deu porque lá tem pensamento republicano, compromisso com a sociedade , independente de partidarismos ou ideologias .
A TEIA é um momento em que Estado e Sociedade se encontram, mas não pode ser , e não é, uma vitrine de programas de governo . Pelo contrário , aqui é um espaço para o protagonismo da sociedade , de experiências que nasceram e se mantém por conta da sociedade . A TEIA, abre caminhos para esta sociedade , para , quem sabe um dia , o Estado ir assumindo a feição de seu povo , um povo que se desenvolve com autonomia e que se empodera até mesmo nas frustrações e tropeços .
E não são poucos os tropeços . As exigências para um conveniamento com as “artesãs ribeirinhas de Santarém” são as mesmas que as estabelecidas para a transferência de milhões ou bilhões de reais para rentistas ou poucas grandes instituições , as mesmas de sempre . Estas sim , muito bem preparadas, com seus consultores , advogados , economistas . Aqueles que são Pontos há mais tempo também sabem das dificuldades encontradas na simples transferência de bolsas para jovens . E o povo , principalmente o que não está aqui , como se frustra com tanto tropeço no dia a dia da política . Mas o caminho foi aberto e não nos perderemos entre as árvores sem ver a floresta .
A TEIA serve para isso , é um momento de parada , de reflexão para a ação , onde o trabalho de cada um se potencializa no contato com o “outro”, na articulação em Rede , tenham convênio formal com o governo ou não . O que pode surgir deste encontro ? Ainda não sabemos, mas a energia vai sendo liberada.
___________________________________________________Célio Turino
Secretário de Programas e Projetos do Ministério da Cultura, declara a união de Arte com Educação, Cidadania com Economia Solidária e faz chegar, por meio do Cultura Viva, àqueles “lugares onde o Estado nunca antes chegou”

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